quarta-feira, dezembro 06, 2006

Chá-de-liberdade

Três fases e um fio-terra. Beatriz observa a fiação urbana através da janela fumê. Ela sabe que deviria estar prestando atenção na aula, afinal ainda periga um exame final em física. Sabe também que deveria estar dando mais valor à vertiginosa proximidade do vestibular. Contudo, ela só consegue raciocinar em volta de uma questão: o que diabos eu estou fazendo aqui?

Ter consciência de que apenas mais algumas horas diárias de estudo a faria uma aluna capaz de passar em qualquer teste é o que a deixa mais confusa. Queria ela ter o empenho e a concentração necessários para o estudo; queria ela permanecer um dia inteiro compenetrada no meio de livros, apostilas e resumos. Ela não consegue. E o pior, nem ao menos a causa de toda essa angústia ela entende.

Por que deveria sentir culpa de passar o dia inteiro tocando um instrumento, dançando, cantando ou atuando? Beatriz não consegue compreender o real motivo pelo qual as pessoas, durante um longo período, sentirem-se necessidade de acordar numa determinada hora da manhã, comer e arrumar-se apressadamente, se dirigir para o mesmo lugar de sempre e ficar por no mínimo quatro horas aprendendo sobre matérias de forma extremamente obrigatória.

Se eu não me redimir a esse sistema serei um fracasso na vida? As pessoas em volta me olharão com desprezo? Morrerei de fome e frio abandonada por uma sociedade que supervaloriza a auto-flagelação em prol do sucesso financeiro? – Beatriz questiona-se – Qual é o mal em apenas não aceitar a “receita do sucesso” imposta pela sociedade? Serei mesmo estereotipada por uma sociedade que se diz correta e elege como seus governantes estrelas da TV e ex-presidentes cassados?

Para Beatriz tudo já alcançou seu nível máximo de sustentação. Chega de tentar integrar-se a um povo tão hipócrita. Não há mais motivo para ser obrigada a ouvir coisas do tipo, “no poste elétrico da nossa querida cidade há três fios de fases distintas com seus respectivos fluxos elétricos e um fio-terra para evitar danos aos eletroeletrônicos”.

O sinal da quinta aula acaba de soar. Beatriz se levanta assim como a maioria da turma o faz. Porém não para daqui a dez minutos retornar ao mesmo lugar o qual ela tem certeza que a grande maioria da turma também não gostaria de estar.

Ela desce as escadas e avança pelo semi-cerrado portão de ferros e cadeados pertencente ao estabelecimento que promete “liberdade” aos seus “alunos”. Um amigo apressado e mal-arrumado que estava chegando atrasando pergunta aonde ela está indo.

Beatriz, com um meigo sorriso estampado em sua boca, responde que irá tomar um “chá-de-sumiço”.

Foi a última vez que algum ocupante da cancela que ela deixou para trás a viu. Há suspeitas de que Beatriz teria se envolvido com o tráfico e sumido no submundo. Afinal, qual outro motivo uma menina daquela teria para largar um futuro tão brilhante e promissor?

quarta-feira, outubro 18, 2006

Poetinha Mixuruca

VAGO

Aluga-se um Canto
Vista para o Atlântico
Romântico, Semântico
Lambdas completos
Em ondas de amores Honestos,
Incestos, Repletos.

quarta-feira, outubro 04, 2006

Minha Primeira Vez

É hoje. Mal abri os olhos e foi esse o primeiro pensamento que me veio à cabeça. Não posso mais adiar, continuei na cama a refletir, o que vão pensar de mim se eu nunca fizer? Afinal, não vou ser o primeiro nem o último da história a praticar tal ato. Está decidido, de hoje não passa.

O café desceu mais amargo que o habitual; notei que já estava entrando em um grau acentuado de nervosismo e o relógio estava marcando apenas sete e quinze da manhã. Pus-me então a pensar sobre o assunto, já que não adiantava tentar disfarçar posto que só aumentaria minha apreensão. A primeira vez não é nada fácil, imagine então uma primeira vez numa cidade desconhecida, sem família nem amigos para que possam oferecer senão apoio, ao menos um diálogo confortante.

Aquele corpo ali, deitado, esperando por você. Como se existisse apenas uma única pessoa capaz de realizar a proeza dentre as milhares do mundo. Uma sutil entrega, fazendo com que você tenha, mesmo que por instantes breves, o poder de trazer uma nova vida de dentro da pessoa. Ação que parece ser até mesmo, heróica. Eu precisava de calma. Afinal, em teoria, já havia aprendido como agir. No curso, falávamos tantas vezes sobre o mesmo tópico que já era enfadonho discorrer sobre tal. Contudo, uma coisa era sabida e temida por todos nós, nervosismo naquelas horas só atrapalha.

Quantas não foram as vezes nas quais nossas mães, orgulhosas de si, narraram e discutiram sobre ao assunto. Algumas contam com tantos detalhes que surpreendem até o mais experiente. É claro que também há aquelas que não gostam nem de relembrar suas experiências, aliás, o que é mais habitual. Elas dizem que dói; que dá um nervoso, uma sensação de não ter controle sobre o próprio corpo. Paradoxalmente, dizem que passariam por tudo novamente só para ter toda a alegria indescritível quando todo o processo acaba. Um tanto quanto masoquistas.

Pesando prós e contras, parti então receoso a fim de exercer meu dever. Afinal, foi para tal que me formei. Sou médico, vivenciando minha primeira residência em um hospital público do centro da cidade. Realizei com sucesso meu primeiro parto. Às quinze horas e sete minutos, vinte e um de janeiro do ano de mil novecentos e noventa e seis.

quinta-feira, setembro 14, 2006

Nessa segunda-feira, soubemos da morte do nosso querido professor Gilson. Não tenho muito que dizer. Não quero fazer um discurso, nem nada do tipo, só quero pedir algumas coisas:

- Paz.

- Vote com sabedoria. Não gaste seu voto à toa. Pesquise, reflita, escolha corretamente, para que o Brasil melhore, e tragédias como essa não ocorram. Somos uma democracia, se botamos a culpa no governo, estamos culpando a nós mesmos.

- Só existe trafico de drogas com o uso de drogas. Se você usa drogas, tem um dedo seu em crimes como esse.


Obrigado


Para mais informações sobre o ocorrido, clique aqui



quinta-feira, setembro 07, 2006

Finais Alternativos

Achei meio parado e suspenso o final do meu último post, então fiz alguns finais alternativos. [se não leu o post “Fredo”, leia, ou não vai entender porra nenhuma]

Final I (dedicado ao Léo)

Fredo pisou os pés na calçada. Estava caindo uma fina garoa naquela manhã de verão. As gotas caiam no seu rosto, provocando uma sensação que a tempo não sentia. A emoção era tanta, que não notou o caminhão vindo em sua direção ao atravessar a rua. Não sentiu dor, mas morreu feliz. Agora a única lembrança de Fredo é uma placa na mesa em que sentava.

Final II (dedicado ao Samuel e Lucas)

Quando Fredo estava pegando suas coisas para se levantar, uma senhora de idade, sentada nos fundos da biblioteca começa a vasculhar sua bolsa, e dela puxa uma espingarda calibre 12. Calmamente ela se levanta e começa a atirar gritando: “Morram malditos miseráveis!”. Fredo se joga em baixo da mesa enquanto vários gritam e correm desesperados. Ele olha a mesa de Norma, e vê seu corpo jogado no chão, banhado de sangue. Ao ver que a velha recarregava, Frederico corre para a rua, mas quando cruzava a porta e sentia o sol no seu rosto, é atingido pela velha, e morre, deixando para trás todas as suas pesquisas sobre o pote de pipoca sem fundo.

Final III (dedicado à Haru)

[...]Um sorriso se abriu, revelando os dentes amarelados pelo café, e ele se levantou gritando animado, “Acabei!”. A biblioteca parou e todos o olharam. Ele recolheu suas coisas, cumprimentou Norma e saiu da biblioteca com um largo sorriso no rosto. Ninguém entendeu nada, e ele nunca mais voltou. Logo após a saída de Fredo, entra um rapaz loiro, alto, de cabelo comprido, olhos azul-esverdeados e aspecto trolesco. Ele caminha até Norma, e, com a mão apontando a cabeça, diz: “It’s all in the mind, you know...”

quarta-feira, setembro 06, 2006

Fredo

A biblioteca da universidade estava lotada. Estudantes, sentados nas velhas mesas de madeira escura, faziam pesquisas, debruçados sob pilhas de livros, outros caminhavam entre as altas estantes cheias de livros, procurando algo de interesse. No horário da manhã o movimento sempre era grande, e as bibliotecárias sempre passavam trabalho para organizar a bagunça deixada pelos freqüentadores. Alguns eram tão assíduos que eram conhecidos por nome e sobrenome, número da carteirinha e curso. Mas nenhum era tão conhecido como Fredo.

Fredo era uma lenda na biblioteca, estava por lá a cerca de vinte e cinco anos. Poucos sabem muita coisa sobre ele, sua história é envolta de lendas e mistérios. A única funcionária que estava lá no dia em que ele chegou era Norma, a bibliotecária chefe, uma senhora simpática, de baixa estatura e cabelos grisalhos, que sempre tinha um sorriso nos lábios, entretanto ela sempre desconversa quando perguntada sobre Fredo. Quando fala alguma coisa, diz apenas: “Frederico é apenas um rapaz ocupado”. A lenda mais conhecida sobre ele, é que em um dia de chuva, Frederico, um estudante de medicina, foi à biblioteca fazer um trabalho sobre anatomia, e ficou dias tentando acabá-lo, mas na sétima noite do sétimo dia, ele ficou louco e nunca mais saiu de lá. Outras lendas dizem que ele foi possuído pelo espírito do arquiteto; mas são apenas histórias.

No começo, achavam que ele sairia logo, mas todo dia pegava mais livros para estudar. Quando acabaram os de medicina, ele passou para matemática e agora estava acabando os de física. Como nunca saia da biblioteca, Norma começou a comprar as refeições do rapaz, sempre um prato com comida do restaurante universitário. Ele também dormia ali, debruçado sobre a mesa. Apesar da aparência maltrapilha, barba e cabelos compridos e desorganizados, sempre fazia sua higiene pessoal no banheiro. Suas roupas eram doadas por outros freqüentadores da biblioteca. Sua mesa era exclusiva, ninguém podia sentar lá, se não era expulso por berros, ou até por livros e borrachas atirados por Fredo contra o invasor. Um trote clássico era mandar algum calouro no lugar de Frederico quando este ia ao banheiro. Sempre rendia boas risadas. A mesa também apresentava rabiscos dos cálculos mais variados: desde simples divisões até as mais complicadas funções logarítmicas, e diversas folhas de caderno amassadas, que ficavam se acumulando até que ele resolvesse jogá-las no lixo.

Apesar das aparências, todos respeitavam Fredo. Alguns por medo, outros porque ele nunca fazia mal a ninguém. Algumas vezes até tirava duvidas dos estudantes, mas essas eram raras, geralmente ele os deixava falando sozinhos. A única pessoa com quem ele falava, mesmo que pouquíssimo, era Norma. Ela tratava-o como um filho, e muitos desavisados achavam que ela era sua mãe mesmo.

Agora no meio da manhã, ele estava debruçado sobre sua mesa, escrevendo rapidamente, com um brilho diferente nos olhos. Estava diferente a manhã toda, se comunicava mais, até cumprimentava algumas pessoas que passavam por sua mesa. De repente, parou, levantou a folha na frente do rosto, para conferir seus cálculos. Um sorriso se abriu, revelando os dentes amarelados pelo café, e ele se levantou gritando animado, “Acabei!”. A biblioteca parou e todos o olharam. Ele recolheu suas coisas, cumprimentou Norma e saiu da biblioteca com um largo sorriso no rosto. Ninguém entendeu nada, e ele nunca mais voltou.



Dedicado ao Lucas, e às conversas insanas na biblioteca.

quinta-feira, agosto 31, 2006

Chinocas a berrar

A história se passa em pleno século XVII e situa-se nos famosos pampas e estâncias gaúchas. Devido a Revolução Farroupilha contra o império, muitas mulheres ficavam sozinhas em casa na espera do retorno de seus homens. E é quando, debaixo de uma grossa chuva e protegidas em suas casas, duas finas moças iniciam a retórica abaixo transcrita.

- Helena, enquanto me penteio, por que não me contas aquela estória em que fostes pega de namoricos com P. Paulo?

- Pois bem Manoela, vou-lhe contar o casa enquanto eu me maquio, assim vario um pouco de assunto.

Nesse exato momento, chegam ao aposento outras duas mulheres.

- Ora vejam só! Helena irá descrever novamente sua aventura com P. Paulo! Deixem-me ficar aqui para que eu medeie a conversa e não deixe ela balbuciar inverdades. – Fala Maria Luiza assim que entra na cena.

- Eu também anseio em desmentir todos os exageros de Helena! – Dispara Anita que também acaba de entrar.

- Tão bom quanto. – Diz helena. - Então vós mediais o caso e assim ficará provada que eu não sou uma mulher de faces!

- Vós vedes amigas! Agora ela diz que não mente! Quão demasiado cinismo! – Vocifera Maria Luiza.

- Hemos de concordar que Helena nunca foi mesmo uma guria por demais honesta. – Apóia Anita.

- Oh! Vós sois ingratas! – Exalta-se Helena. Eu que pulo suas botas todos os dias e é assim que vós retribuís! Sinto-me ofendida!

- Acalma-te prima Helena, eu remedeio suas dores e prometo-lhe que tu nunca mais precisarás polir botas alheias. – Consola Manoela que resolve entrar na discussão.

- Vós credes a qual baixo recurso ela se apóia para nos afrontar?! Polir botas! Ora! Não é mais do que sua obrigação, já que é a mais jovem dentre nós! – Continua Maria Luiza ainda aos gritos.

- Tu! Pares de gritar ou senão eu incendeio suas botas já! – Exalta-se Helena que parta para cima de Maria Luiza.

- Odeio-te loura esganiçada! – Berra Maria L.

Dá-se então uma batalha épica onde só se via duas nobres damas rolando pelas capoeiras gaúchas afora que só é interrompida na sagrada hora do chimarrão, porque não se pode quebrar tradições.

Chegamos assim ao fim da nossa eloqüente e breve narrativa. E vós se por um acaso rides do texto, sabeis que acabais de aprender dezesseis formas verbais das mais difíceis de serem gravadas!

Não acreditais?

O texto está aí para que vós averigüeis.

domingo, agosto 20, 2006

O mundo precisa jogar

Lembro dos meus tempos de capoeirista. Lá no coração do Brasil, em minha querida Brasília, havia uma academia onde eu pude adentrar na mágica da dança e da luta genuinamente brasileira: a capoeira.

A academia, não sei se ainda existe; porém, eu me lembro de um fato curioso quanto a sua localização. Em uma rua predominantemente comercial e em frente a uma antiga concessionária da Ford erguia-se a Raízes do Brasil, que mesmo má localizada atraía diversos praticantes, até mesmo de outras localidades.

Pois bem, meu intuito ao começar a redigir este texto não era de fazer publicidade, mas sim de compartilhar com vocês o que eu sentia naquela época e que só fui perceber anos depois, em meio aos devaneios que fatalmente me ocorrem quando me ponho a refletir.

No dia em que cheguei ao grupo de capoeira, mal conseguia me expressar devido a uma extrema timidez que até hoje me acomete, mas que naquele tempo era muito mais sufocante e angustiante do que nos tempos atuais. Fazia-me sofrer sem saber bem o porque.

“Havaiano” era o apelido da primeira pessoa que me recebeu no grupo e também um dos únicos nomes que me vêm à memória quando lembro do grupo. Ele não era o meu mestre, contudo, foi um companheiro mais fiel e conselheiro do que o próprio professor.

A música que embalava todos os treinos era reproduzida pelas antigas fitas K7, com seus nostálgicos e particulares chiados. E assim foi, dia após dia, treino após treino, fita após fita, que fui aprendendo a ginga da luta e me familiarizando com os rápidos movimentos.

Entretanto, mesmo depois de meses de treino, eu não tinha coragem de entrar numa roda de capoeira nem de participar dos inúmeros eventos promovidos pela academia e a única pessoa com quem conversava era com o meu amigo corda azul, Havaiano.

Até que um dia algo surpreendente aconteceu. Na véspera de meu aniversário o grupo com qual treinava, preparou uma comemoração surpresa que me emociona até hoje. Ao som de berimbaus, atabaques e pandeiros cantaram e comemoraram a data, com direito a Parabéns a Você e até mesmo uma letra de improviso cantada pelo fiel amigo Havaiano. Foi nesse dia no qual, finalmente, entrei na minha primeira roda de capoeira, um dia inesquecível, mesmo após tantos anos e com a memória já fraca.

E o que isso tem de mais? – você se perguntaria - Será que toda essa estória só pra falar de uma experiência pessoal? – Eu penso que não.

Esta lembrança dos meus longínquos tempos de lutador de capoeira me veio justamente num momento de angústia e aflição, no qual eu observava a sociedade “pós-moderna” da qual fazemos parte e percebia que estávamos perdemos valores por demasiado importantes. Poucas pessoas, na dita “sociedade”, fazem alguma coisa ao próximo apenas pelo simples prazer de fazer o outro feliz. Poucas também são aquelas que dão valor ao grupo, a amizade verdadeira e sem compromisso, tal qual belo exemplo foi aquela festa surpresa.

Por isso eu penso que o mundo precisa refletir e relembrar que a vida não é só competição, testes, dinheiro, corrupção. O mundo tem de tomar consciência da alegria, da amizade, da música, da beleza.

O mundo precisa jogar capoeira.

sábado, agosto 12, 2006

Felicidade Suspensa

O quarto está em silêncio. A janela, como de hábito, deixa entrar brisas leves remanescentes da madrugada, embalando habilmente a coreografia das cortinas.

Barulhos de chinelos no chão vêm do andar superior. Um celular toca pontualmente às seis horas. Lá fora a noite ainda se faz presente quando ele se levanta em direção ao seu amigo barulhento de todas as manhãs a fim de desligá-lo. Sua vista ainda não consegue captar todo ambiente enquanto ele vai esquecendo de todos os sonhos que tivera na noite anterior.

Seis bolachas de água e sal, meia tigela de cereal, um café magro. No elevador ele desce à garagem com mais duas pessoas, olhos fixos no ponto onde a cada andar um numero cresce, ou decresce. Embora o marcador esteja desregulado há mais de um ano.

O carro é do ano; o paletó, importado. Ele resolveu – ou quem sabe esqueceu – que não iria usar gravata hoje, e sai da sua escura moradia. Lá fora o dia, mesmo com um céu límpido, já é tempestuoso. Milhares de pessoas estão nas ruas: vendedores ambulantes, trabalhadores, idosos abatidos na fila da previdência. Ele pára no sinal vermelho. Passa a mão na maçaneta da porta e no ativador do vidro elétrico tal qual um profissional ao mesmo tempo em que olha para os dois retrovisores. Nenhum perigo à vista.

Um Mercedes-benz, abarrotado de pessoas, para ao lado de seu carro. Muitas dessas pessoas estão de pé, poucas são as sentadas. Um homem, portador de um bigode espesso e grisalho, olha para o interior do carro dele. Então ele pensa: “Já está na hora de eu colocar uma película mais opaca”. O homem do Mercedes abre um largo sorriso e acena para ele enquanto se distancia pelas ruas. O sinal abre, uma buzina insistente chega aos seus ouvidos e ele arranca logo após o homem sumir de sua vista.

Chegando ao escritório nota, pela primeira vez, o livro que sua secretária lê: “Pequenos Milagres – Coincidências extraordinárias do dia-a-dia, editora sextante”.

Dentro da sala, ele se dá conta de que nunca havia aberto as persianas que protegem a janela da luz exterior. Ergue então o mecanismo de cordas fazendo com que fulgurosos raios matinais adentrem na sala e iluminem as partículas suspensas pela poeira da persiana pouco usada.

Neste momento passa um limpador de vidro pelo seu andar, é o mesmo homem do ônibus, o mesmo bigode grisalho que mais cedo havia acenado para ele. O homem, mais uma vez, não hesita em abrir um belo sorriso no seu rosto castigado e segue o seu trabalho.

Rodrigo fica sozinho diante as janelas limpas. Resolve abri-las. Observa os passantes na rua e consegue diferenciar aquelas pessoas que estão satisfeitas ou tristes com a vida somente pelo modo de andar particular de cada uma.

Depois de certo tempo observando a tudo estaticamente, sente a mesma brisa leve que entra em seu quarto todas as manhãs tocando o seu rosto.

Sorri.

A felicidade é óbvia.

sábado, julho 29, 2006

Ela estava lá, simplesmente a atravessar.

Angústia; medo. Sentada em sua cadeira de balanço, idosa e sábia amiga, ela olha para a avenida movimentada lá em baixo quando de súbito surge em sua frente, como um anagrama decifrado, a resposta sobre nós; os supostos seres racionais. Ela vê uma imensa tela pop representando a sublime fusão de duas simples embora temidas palavras: angústia e medo.

Temos medo. Medo de rir; medo de chorar; medo de quebrar; medo de confiar; medo de pecar. Por quantas vezes não contemos o riso e seguramos o choro simplesmente pelo fato de que nenhuma outra pessoa na sala sorri ou derrama uma lágrima. Inúmeras foram as vezes em que hesitamos arriscar, ousar, gostar, perdoar. Portanto, como uma óbvia conseqüência, a angústia vem e instala-se, diariamente lembrada e maliciosamente disfarçada: estresses, depressões, doenças.

Depois procuramos saídas: remédio, análise, terapias. Ou senão apelamos: agonia, hipocrisia, rebeldia. Uma extensa trajetória então percorremos e no fim infelizmente muitos de nós terminamos tão medrosos e angustiados quanto estávamos no princípio. Terminamos vazios. Triste fardo.

Ah, mas aí vem o alívio! Felizmente sabemos que também há aquele que percorre o mesmo caminho, a mesma estrada, porém encontra um desfecho que surpreende até mesmo a ele. Num dia qualquer, como em um estopim, ele estaca, e no meio da mesmice a enxerga, imensa, intensa. Finalmente vê a tela, surgindo de onde ela sempre esteve: do outro lado, era só olhar.

Feliz, ela se levanta, vai à cozinha e após o substancioso lanche da tarde, deita-se em sua cama e morre. Cheia.

sábado, julho 22, 2006

Despertar

Lá fora há flores, rios, campos, montanhas, nuvens, o Sol, pessoas, a vida. E você passa seus dias aqui, nessa escuridão, sozinho, apenas com seus pensamentos, esperando que todos concordem com você, mesmo sem saber o que você quer. O que você está fazendo? Ainda não percebeu? Você não está sozinho. Existem muitos como você. Poucos ousaram tentar escapar, e você pode ser um dos que conseguiram. Está com medo? Tolo. Não há o que temer. Olhe para mim. Não pense desse jeito. Você vai conseguir. É simples. Vamos. Não tenha medo. Quebre o muro. Eu te espero lá fora.

segunda-feira, julho 17, 2006

Saciado

Sentada como todos os dias naquela cadeira que de forma peculiar já era sua, eu a observava. Começo então a refletir sobre todos os anos em que passei ao lado desta mulher, tudo o que nós passamos juntos, as crises, as vitórias, o tetra, o penta, quem sabe o hexa... Tudo vinha numa avalanche de sentimentos que tive que me controlar para não chorar ali diante dela, mas era tão intenso que agora acho que deixei de alguma forma transparecer o que sentia naquele momento.

Lembro do primeiro dia que parei pra perceber o que ela representava realmente na minha vida, confesso que foi em um momento de raiva, desejei nunca ter a conhecido, queria poder nunca mais encontra-la. Contudo por mais que eu forçasse a nossa separação, algo continuava nos unindo, uma força maior, algo inexplicável, mágico. Eu sei, eu sei, toda essa ladainha de forças e energias que unem duas pessoas, metade da laranja, tampa da panela, isso tudo já é tão batido, porém foram esses os únicos termos que encontrei para dar forma o que pra mim era imaterial.

Ali, na minha frente, nada mais comum que isso afinal já são 20 anos em que sentamos de frente um para o outros todos os dias, percebi que não poderia viver sem essa mulher, indubitavelmente não conseguia imaginar o mundo sem ela, amava-a. Amava esta pois foi ela a única a estar sempre apoiando meus planos, minhas ambições, enxugando minhas lágrimas quando não dá certo, afagando-me em seus tenros braços, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença.

Seu prato estava já no fim, ela então percebe o meu momento de contemplação. Um pouco envergonhada ela cruza seu olhar com o meu, sorri um sorriso tão cativante tal qual sua própria pessoa e me pergunta com sua voz eternamente doce:

- Filho, já acabou?

- Sim mamãe; já não sinto fome. – respondo eu

Não consigo segurar, por entre meus lábios que agora também abrigam um sorriso, choro. De felicidade.

quinta-feira, julho 13, 2006

Ele, I.M.L nº. 433

Uma luz se acende e ele a observa; melancólico. Numa nebulosa noite de inverno vê-se uma janela pequena; como um único ponto no breu de uma madrugada fria. Madruga essa onde a maioria sonha e anseia as mais profundas vontades; quantos não são os incontáveis segredos revelados em apenas uma única noite; quantas não são as invenções idealizadas; quantas não são as tristezas relembradas. Porém, lá está um pedaço da noite que acaba de se iluminar.

Do lugar onde se encontra, o sujeito pouco consegue discernir o emaranhado de edificações, as milhares de janelas. Contudo, ele vê, como uma rosa que nasce na savana amarela, uma janela que acaba de acender. Ele então se questiona do por que a pessoa que habita a janela também não está sonhando? Por que ela também não consegue dormir? Por que somente esta, dentre várias, tocou o interruptor às três da manhã?

Ele pensa na possibilidade de existir outra pessoa como ele, e tão perto, logo ali, duas ruas depois da sua. Pensa se existirá mesmo um outro alguém que não se sinta parte desse mundo, onde uma marca numa camiseta vale mais do que uma boa ação ou uma ajuda espontânea. Existirá mesmo outrem que se indigne ao assistir crianças desde pequenas aprendendo a levar vantagem sobre o outro, sendo induzidas a burlar leis e condutas cada vez mais cedo. Uma faísca de esperança ousa nascer nos pensamentos dele.

Contudo ele não se ilude novamente. Daquele coração experiente e castigado nada mais germinará. Não há mais como mudar; as raízes do problema, segundo ele, já estão tão profundas que envolvem todo o planeta. Não há mais retornos a se tomar.

Uma brisa leve e fresca sopra. Ele cai. Ouve-se um baque surdo e vazio na noite. A luz se apaga. A cidade dorme.