quinta-feira, agosto 31, 2006

Chinocas a berrar

A história se passa em pleno século XVII e situa-se nos famosos pampas e estâncias gaúchas. Devido a Revolução Farroupilha contra o império, muitas mulheres ficavam sozinhas em casa na espera do retorno de seus homens. E é quando, debaixo de uma grossa chuva e protegidas em suas casas, duas finas moças iniciam a retórica abaixo transcrita.

- Helena, enquanto me penteio, por que não me contas aquela estória em que fostes pega de namoricos com P. Paulo?

- Pois bem Manoela, vou-lhe contar o casa enquanto eu me maquio, assim vario um pouco de assunto.

Nesse exato momento, chegam ao aposento outras duas mulheres.

- Ora vejam só! Helena irá descrever novamente sua aventura com P. Paulo! Deixem-me ficar aqui para que eu medeie a conversa e não deixe ela balbuciar inverdades. – Fala Maria Luiza assim que entra na cena.

- Eu também anseio em desmentir todos os exageros de Helena! – Dispara Anita que também acaba de entrar.

- Tão bom quanto. – Diz helena. - Então vós mediais o caso e assim ficará provada que eu não sou uma mulher de faces!

- Vós vedes amigas! Agora ela diz que não mente! Quão demasiado cinismo! – Vocifera Maria Luiza.

- Hemos de concordar que Helena nunca foi mesmo uma guria por demais honesta. – Apóia Anita.

- Oh! Vós sois ingratas! – Exalta-se Helena. Eu que pulo suas botas todos os dias e é assim que vós retribuís! Sinto-me ofendida!

- Acalma-te prima Helena, eu remedeio suas dores e prometo-lhe que tu nunca mais precisarás polir botas alheias. – Consola Manoela que resolve entrar na discussão.

- Vós credes a qual baixo recurso ela se apóia para nos afrontar?! Polir botas! Ora! Não é mais do que sua obrigação, já que é a mais jovem dentre nós! – Continua Maria Luiza ainda aos gritos.

- Tu! Pares de gritar ou senão eu incendeio suas botas já! – Exalta-se Helena que parta para cima de Maria Luiza.

- Odeio-te loura esganiçada! – Berra Maria L.

Dá-se então uma batalha épica onde só se via duas nobres damas rolando pelas capoeiras gaúchas afora que só é interrompida na sagrada hora do chimarrão, porque não se pode quebrar tradições.

Chegamos assim ao fim da nossa eloqüente e breve narrativa. E vós se por um acaso rides do texto, sabeis que acabais de aprender dezesseis formas verbais das mais difíceis de serem gravadas!

Não acreditais?

O texto está aí para que vós averigüeis.

domingo, agosto 20, 2006

O mundo precisa jogar

Lembro dos meus tempos de capoeirista. Lá no coração do Brasil, em minha querida Brasília, havia uma academia onde eu pude adentrar na mágica da dança e da luta genuinamente brasileira: a capoeira.

A academia, não sei se ainda existe; porém, eu me lembro de um fato curioso quanto a sua localização. Em uma rua predominantemente comercial e em frente a uma antiga concessionária da Ford erguia-se a Raízes do Brasil, que mesmo má localizada atraía diversos praticantes, até mesmo de outras localidades.

Pois bem, meu intuito ao começar a redigir este texto não era de fazer publicidade, mas sim de compartilhar com vocês o que eu sentia naquela época e que só fui perceber anos depois, em meio aos devaneios que fatalmente me ocorrem quando me ponho a refletir.

No dia em que cheguei ao grupo de capoeira, mal conseguia me expressar devido a uma extrema timidez que até hoje me acomete, mas que naquele tempo era muito mais sufocante e angustiante do que nos tempos atuais. Fazia-me sofrer sem saber bem o porque.

“Havaiano” era o apelido da primeira pessoa que me recebeu no grupo e também um dos únicos nomes que me vêm à memória quando lembro do grupo. Ele não era o meu mestre, contudo, foi um companheiro mais fiel e conselheiro do que o próprio professor.

A música que embalava todos os treinos era reproduzida pelas antigas fitas K7, com seus nostálgicos e particulares chiados. E assim foi, dia após dia, treino após treino, fita após fita, que fui aprendendo a ginga da luta e me familiarizando com os rápidos movimentos.

Entretanto, mesmo depois de meses de treino, eu não tinha coragem de entrar numa roda de capoeira nem de participar dos inúmeros eventos promovidos pela academia e a única pessoa com quem conversava era com o meu amigo corda azul, Havaiano.

Até que um dia algo surpreendente aconteceu. Na véspera de meu aniversário o grupo com qual treinava, preparou uma comemoração surpresa que me emociona até hoje. Ao som de berimbaus, atabaques e pandeiros cantaram e comemoraram a data, com direito a Parabéns a Você e até mesmo uma letra de improviso cantada pelo fiel amigo Havaiano. Foi nesse dia no qual, finalmente, entrei na minha primeira roda de capoeira, um dia inesquecível, mesmo após tantos anos e com a memória já fraca.

E o que isso tem de mais? – você se perguntaria - Será que toda essa estória só pra falar de uma experiência pessoal? – Eu penso que não.

Esta lembrança dos meus longínquos tempos de lutador de capoeira me veio justamente num momento de angústia e aflição, no qual eu observava a sociedade “pós-moderna” da qual fazemos parte e percebia que estávamos perdemos valores por demasiado importantes. Poucas pessoas, na dita “sociedade”, fazem alguma coisa ao próximo apenas pelo simples prazer de fazer o outro feliz. Poucas também são aquelas que dão valor ao grupo, a amizade verdadeira e sem compromisso, tal qual belo exemplo foi aquela festa surpresa.

Por isso eu penso que o mundo precisa refletir e relembrar que a vida não é só competição, testes, dinheiro, corrupção. O mundo tem de tomar consciência da alegria, da amizade, da música, da beleza.

O mundo precisa jogar capoeira.

sábado, agosto 12, 2006

Felicidade Suspensa

O quarto está em silêncio. A janela, como de hábito, deixa entrar brisas leves remanescentes da madrugada, embalando habilmente a coreografia das cortinas.

Barulhos de chinelos no chão vêm do andar superior. Um celular toca pontualmente às seis horas. Lá fora a noite ainda se faz presente quando ele se levanta em direção ao seu amigo barulhento de todas as manhãs a fim de desligá-lo. Sua vista ainda não consegue captar todo ambiente enquanto ele vai esquecendo de todos os sonhos que tivera na noite anterior.

Seis bolachas de água e sal, meia tigela de cereal, um café magro. No elevador ele desce à garagem com mais duas pessoas, olhos fixos no ponto onde a cada andar um numero cresce, ou decresce. Embora o marcador esteja desregulado há mais de um ano.

O carro é do ano; o paletó, importado. Ele resolveu – ou quem sabe esqueceu – que não iria usar gravata hoje, e sai da sua escura moradia. Lá fora o dia, mesmo com um céu límpido, já é tempestuoso. Milhares de pessoas estão nas ruas: vendedores ambulantes, trabalhadores, idosos abatidos na fila da previdência. Ele pára no sinal vermelho. Passa a mão na maçaneta da porta e no ativador do vidro elétrico tal qual um profissional ao mesmo tempo em que olha para os dois retrovisores. Nenhum perigo à vista.

Um Mercedes-benz, abarrotado de pessoas, para ao lado de seu carro. Muitas dessas pessoas estão de pé, poucas são as sentadas. Um homem, portador de um bigode espesso e grisalho, olha para o interior do carro dele. Então ele pensa: “Já está na hora de eu colocar uma película mais opaca”. O homem do Mercedes abre um largo sorriso e acena para ele enquanto se distancia pelas ruas. O sinal abre, uma buzina insistente chega aos seus ouvidos e ele arranca logo após o homem sumir de sua vista.

Chegando ao escritório nota, pela primeira vez, o livro que sua secretária lê: “Pequenos Milagres – Coincidências extraordinárias do dia-a-dia, editora sextante”.

Dentro da sala, ele se dá conta de que nunca havia aberto as persianas que protegem a janela da luz exterior. Ergue então o mecanismo de cordas fazendo com que fulgurosos raios matinais adentrem na sala e iluminem as partículas suspensas pela poeira da persiana pouco usada.

Neste momento passa um limpador de vidro pelo seu andar, é o mesmo homem do ônibus, o mesmo bigode grisalho que mais cedo havia acenado para ele. O homem, mais uma vez, não hesita em abrir um belo sorriso no seu rosto castigado e segue o seu trabalho.

Rodrigo fica sozinho diante as janelas limpas. Resolve abri-las. Observa os passantes na rua e consegue diferenciar aquelas pessoas que estão satisfeitas ou tristes com a vida somente pelo modo de andar particular de cada uma.

Depois de certo tempo observando a tudo estaticamente, sente a mesma brisa leve que entra em seu quarto todas as manhãs tocando o seu rosto.

Sorri.

A felicidade é óbvia.