quarta-feira, dezembro 06, 2006

Chá-de-liberdade

Três fases e um fio-terra. Beatriz observa a fiação urbana através da janela fumê. Ela sabe que deviria estar prestando atenção na aula, afinal ainda periga um exame final em física. Sabe também que deveria estar dando mais valor à vertiginosa proximidade do vestibular. Contudo, ela só consegue raciocinar em volta de uma questão: o que diabos eu estou fazendo aqui?

Ter consciência de que apenas mais algumas horas diárias de estudo a faria uma aluna capaz de passar em qualquer teste é o que a deixa mais confusa. Queria ela ter o empenho e a concentração necessários para o estudo; queria ela permanecer um dia inteiro compenetrada no meio de livros, apostilas e resumos. Ela não consegue. E o pior, nem ao menos a causa de toda essa angústia ela entende.

Por que deveria sentir culpa de passar o dia inteiro tocando um instrumento, dançando, cantando ou atuando? Beatriz não consegue compreender o real motivo pelo qual as pessoas, durante um longo período, sentirem-se necessidade de acordar numa determinada hora da manhã, comer e arrumar-se apressadamente, se dirigir para o mesmo lugar de sempre e ficar por no mínimo quatro horas aprendendo sobre matérias de forma extremamente obrigatória.

Se eu não me redimir a esse sistema serei um fracasso na vida? As pessoas em volta me olharão com desprezo? Morrerei de fome e frio abandonada por uma sociedade que supervaloriza a auto-flagelação em prol do sucesso financeiro? – Beatriz questiona-se – Qual é o mal em apenas não aceitar a “receita do sucesso” imposta pela sociedade? Serei mesmo estereotipada por uma sociedade que se diz correta e elege como seus governantes estrelas da TV e ex-presidentes cassados?

Para Beatriz tudo já alcançou seu nível máximo de sustentação. Chega de tentar integrar-se a um povo tão hipócrita. Não há mais motivo para ser obrigada a ouvir coisas do tipo, “no poste elétrico da nossa querida cidade há três fios de fases distintas com seus respectivos fluxos elétricos e um fio-terra para evitar danos aos eletroeletrônicos”.

O sinal da quinta aula acaba de soar. Beatriz se levanta assim como a maioria da turma o faz. Porém não para daqui a dez minutos retornar ao mesmo lugar o qual ela tem certeza que a grande maioria da turma também não gostaria de estar.

Ela desce as escadas e avança pelo semi-cerrado portão de ferros e cadeados pertencente ao estabelecimento que promete “liberdade” aos seus “alunos”. Um amigo apressado e mal-arrumado que estava chegando atrasando pergunta aonde ela está indo.

Beatriz, com um meigo sorriso estampado em sua boca, responde que irá tomar um “chá-de-sumiço”.

Foi a última vez que algum ocupante da cancela que ela deixou para trás a viu. Há suspeitas de que Beatriz teria se envolvido com o tráfico e sumido no submundo. Afinal, qual outro motivo uma menina daquela teria para largar um futuro tão brilhante e promissor?

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