quinta-feira, outubro 01, 2009

O Velho

O chiado do toca-discos ao chegar ao fim do LP ecoava pela pequena sala. Os velhos dedos levantaram lentamente a agulha e, com mais paciência ainda, viraram o antigo disco. Agora a agulha descia cuidadosamente até o primeiro sulco do vinil. Pronto, o som de décadas passadas voltava a soar pelos cômodos da casa. Os mesmos velhos dedos alcançam o surrado violão encostado na parede. Sentado na cadeira, tocava e cantava suavemente com sua voz cansada e abatida pelos erros e vícios da juventude.

A sala era bem mobiliada, mesas, sofás e televisão novos, apenas o velho, o aparelho de som e violão contrastavam com o ambiente enxuto. Estava sozinho, a esposa estava viajando, os filhos já tinham tocado suas vidas, apenas seu cachorro o acompanhava, deitado no sofá admirando seu dono. Dos três filhos apenas um tentou seguir o sonho do pai de ganhar a vida com música, apesar de todos receberem uma educação musical na infância. E este único conseguiu, para orgulho do velho patriarca.

Desde pequeno, sempre sonhava com grandes shows e performances, em escrever seu nome na musica. O máximo que conseguira foi alguns shows em bares e casas noturnas de sua cidade e estado. Na infância, nunca levou a prática do instrumento a sério, e, quando levou, a faculdade e trabalho impediram-no de seguir seu sonho. Apesar disso se formou e virou um profissional de sucesso em um ramo completamente independente da música. Ganhou dinheiro, comprou uma casa, casou, teve filhos, se aposentou, mas ainda faltava alguma coisa. Dizem que todo homem tem que escrever um livro e plantar uma árvore, mas isso não completava suas necessidades. Ele sabia o que faltava, mas se não conseguira até agora; porque tentar novamente? Provavelmente ele não era, simplesmente, bom o suficiente.

O long-play chegava a sua música favorita, a sua palhetada e voz suave ganharam força enquanto a musica tocava. Sentiu-se bem novamente, como quando era um jovem sonhador. Levantou com pressa, pegou um lápis e um bloco e começou a rabiscar letras enquanto fazia acordes no violão. Somente agora ele tinha percebido, tinha tempo, dedicação e dinheiro. Será mesmo que não vale a pena tentar novamente?

quarta-feira, junho 13, 2007

Pierrot

Acabou. Terminou de vez. Já se passava da meia-noite quando após horas a fio de estudo improdutivo tomei a decisão de dar um fim no meu sofrimento.

Após receber mais uma negativa para algum pequeno compromisso que seja, uma peça de teatro, um cineminha ao fim da semana, um petisco qualquer na esquina do supermercado.

Nada, todos negados.

Ela afirma ser por causas superiores, vontades alheias as dela, mas eu não consigo admitir. Como assim. Como após meses de amor intenso tudo pode ser apagar de uma hora para outra, como tudo aquilo de bom que havíamos construído evaporou da mente dela como água em ebulição fervorosa.

Eu sofro. Na kitnet apertada, tocando músicas tristes e melancólicas na velha viola de família, com o copo ao lado cheirando a fumaça, tentando esquecê-la; eu sofro.

Paro pra pensar: Diabos, que assunto mais clichê, sofrer de amor!

Eu deveria estar por aí, na farra, como fazem os jovens de hoje em dia. Muita bebedeira, curtição e agarração sem compromisso nenhum, gozando do imaculado livre arbítrio da juventude.

Confesso que já tentei. Já tive outras mulheres além dela.

Aquelas que chamam de mulheres "fast-food".

Mas mesmo acordando no dia seguinte ao lado de um fenômeno da natureza - belas curvas, belos músculos, belos cabelos; e mesmo após adentrar e preencher com voracidade a alma e corpo de outrem durante a noite; eu acordo vazio. Triste, melancólico como uma caminhada numa praia a mercê de densa neblina.

Por que meu Deus?! Por quê?!

Por que os seres-humanos, famosos por tanta racionalidade e inteligência, sofrem desse mal burro, egoísta e teimoso com a alcunha de amor?!

"É o que dá graça à vida!" – diria algum bonvivant que também, no fundo de um coração malandro, já sofreu por alguém por culpa do amor.

Pois se é pra dar graça à vida, obrigado; essa graça eu não quero não senhor.

Mas... oh sim!

Não nos esqueçamos da sublime fase enquanto o amor é concreto, palpável, compartilhável entre duas partes.

Juras eternas, abraços infinitos, beijos eloqüentes!

Como é bom amar e ser amado.

Viver e compartilhar.

Ser egoísta de querer possuir um ser tão insignificante para a grandeza do universo só para si.

E mesmo assim nós juramos: "Te amo! Do tamanho de mil universos inteiros, meu amor!"

Como o amor é bobo, mimado, dengoso e superprotegido.

Quando se está amando é só ele que importa! AMOR, eu e nada mais!

Assim fica fácil entender a dor aguda no peito, a angústia na boca do estômago, as tremedeiras de choro na cama de madrugada durante uma data especial quando tudo se acaba.

O mundo desaba, o chão desaparece, as paredes se tornam pequenos caixotes; você pensa que vai morrer ali mesmo, no mesmo quarto que já presenciou as mais irrefutáveis provas de amor...

Pior é quando, como se não bastasse somente essa dor alucinante, vem o dito arrependimento.

Palavra que deveria ser suprimida do dicionário, da vida, da terra, do universo.

Melhor é ser abandonado do que abandonar um grande amor e depois se arrepender profundamente.

Ficar pensando se não já havia encontrado a alma gêmea, a metade da laranja, o amigo-do-lado-esquerdo-do-peito, a mulher, a companheira, a mãe, a vó, enfim...

Encontrou e deixou escapar por entre os rudes e insensíveis dedos que não souberam apreciar a maciez da pessoa que ofereceu "todo o amor desse mundo" só e somente para você.

Dói, dói muito.

E eu não desejo isso pra ninguém.

Nem mesmo para o Bush ou para o Lula.

domingo, maio 20, 2007

O Escrivão

Monitor, teclado, mouse. Tudo aquilo estava a sua frente e ele não conseguia escrever nada. Nem ao menos olhava para a tela do monitor para ver o que estava escrevendo. “Ninguém vai ler mesmo, então não importa se eu escrever errado” – pensava.

Ele precisava escrever, mas não sabia o porquê. Ultimamente vinha tendo essa vontade. Sempre que ele via postagens em flogs e blogs dizendo , após um longo texto, que escritor agora estava bem melhor após todas as injúrias e raivas postas para fora em simples bytes de palavras, sentia necessidade de escrever também. Ele queria desabafar, escrever tudo aquilo que estava preso em seu peito mas que ele não podia, ou não conseguia, dizer para ninguém mais.

Meia hora depois ele continua na primeira linha; já havia escrito um parágrafo inteiro, porém achou ruim e apagou: “Quisera eu ter prestado atenção às aulas de redação...”. Sua criatividade também não andava lá essas coisas. Ele só queria entender por que sentia aquela sutil depressão que teimava em continuar no seu peito, esmagando seu coração e sua alma aos poucos. Afinal, ele tinha uma vida ótima; estudava, tinha já um estágio, possuía dinheiro suficiente para se divertir com os amigos, havia também seus amigos que ele pensava ser bons amigos. Contudo ele sabia que de nada adiantava tentar camuflar sua tristeza ocupando a cabeça com os amigos, com os estudos ou até mesmo com a bebida nos fins-de-semana.

Ele precisava escrever. Quem sabe escrevendo não encontrava a resposta para a sua ansiedade, quem sabe talvez até não conseguiria ir apagando sua tristeza ao escrever para um computador mudo e sem reação.

Já se foram dois parágrafos; “Acho que peguei o ritmo...”, ele pensa sem muita felicidade. O processo é doloroso e massacrante; quanto mais escreve, mais a dor miúda no peito vai aumentando de intensidade. É como limpar um corte profundo, dói muito, muito mesmo, mas é necessário para a saúde mental e emocional.

Já podendo notar pingos de suas lágrimas na mesa ele não parou; não agora, não quando ele finalmente conseguiu transpor a barreira e entrar no super-protegido mundo povoado pelos seus traumas e por suas fraquezas. Ele queria de qualquer forma entender essa alucinante dor em sua alma.

Ficou escrevendo por toda a madrugada e decidiu que não iria para a faculdade naquela manhã e nem ao estágio pela tarde. Queria dormir profundamente pra quem sabe escrever mais na noite seguinte.

Dormiu por horas e acordou atordoado. Após o sonho que parece que durou infinitas horas ele agora sabe aquilo o qual lhe causa toda essa angústia.

Liga o monitor, abre o editor de texto. Sente as lágrimas secas nas teclas. Está decidido a escrever ferozmente.

Vai escrever sobre o que domina sua alma e seu mundo...

Escreverá sobre ela.

terça-feira, maio 08, 2007

8

Vi um mendigo pedindo esmolas.
- Qual seu nome? - perguntei.
- Não lembro.
- Como alguém pode esquecer o próprio nome?
- Isso não é nada. Pior são as pessoas, que
passam por mim e esquecem que sou gente.

BOTTER, Nelson. 'Distraídos' (www.blonicas.zip.net)

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quarta-feira, dezembro 06, 2006

Chá-de-liberdade

Três fases e um fio-terra. Beatriz observa a fiação urbana através da janela fumê. Ela sabe que deviria estar prestando atenção na aula, afinal ainda periga um exame final em física. Sabe também que deveria estar dando mais valor à vertiginosa proximidade do vestibular. Contudo, ela só consegue raciocinar em volta de uma questão: o que diabos eu estou fazendo aqui?

Ter consciência de que apenas mais algumas horas diárias de estudo a faria uma aluna capaz de passar em qualquer teste é o que a deixa mais confusa. Queria ela ter o empenho e a concentração necessários para o estudo; queria ela permanecer um dia inteiro compenetrada no meio de livros, apostilas e resumos. Ela não consegue. E o pior, nem ao menos a causa de toda essa angústia ela entende.

Por que deveria sentir culpa de passar o dia inteiro tocando um instrumento, dançando, cantando ou atuando? Beatriz não consegue compreender o real motivo pelo qual as pessoas, durante um longo período, sentirem-se necessidade de acordar numa determinada hora da manhã, comer e arrumar-se apressadamente, se dirigir para o mesmo lugar de sempre e ficar por no mínimo quatro horas aprendendo sobre matérias de forma extremamente obrigatória.

Se eu não me redimir a esse sistema serei um fracasso na vida? As pessoas em volta me olharão com desprezo? Morrerei de fome e frio abandonada por uma sociedade que supervaloriza a auto-flagelação em prol do sucesso financeiro? – Beatriz questiona-se – Qual é o mal em apenas não aceitar a “receita do sucesso” imposta pela sociedade? Serei mesmo estereotipada por uma sociedade que se diz correta e elege como seus governantes estrelas da TV e ex-presidentes cassados?

Para Beatriz tudo já alcançou seu nível máximo de sustentação. Chega de tentar integrar-se a um povo tão hipócrita. Não há mais motivo para ser obrigada a ouvir coisas do tipo, “no poste elétrico da nossa querida cidade há três fios de fases distintas com seus respectivos fluxos elétricos e um fio-terra para evitar danos aos eletroeletrônicos”.

O sinal da quinta aula acaba de soar. Beatriz se levanta assim como a maioria da turma o faz. Porém não para daqui a dez minutos retornar ao mesmo lugar o qual ela tem certeza que a grande maioria da turma também não gostaria de estar.

Ela desce as escadas e avança pelo semi-cerrado portão de ferros e cadeados pertencente ao estabelecimento que promete “liberdade” aos seus “alunos”. Um amigo apressado e mal-arrumado que estava chegando atrasando pergunta aonde ela está indo.

Beatriz, com um meigo sorriso estampado em sua boca, responde que irá tomar um “chá-de-sumiço”.

Foi a última vez que algum ocupante da cancela que ela deixou para trás a viu. Há suspeitas de que Beatriz teria se envolvido com o tráfico e sumido no submundo. Afinal, qual outro motivo uma menina daquela teria para largar um futuro tão brilhante e promissor?

quarta-feira, outubro 18, 2006

Poetinha Mixuruca

VAGO

Aluga-se um Canto
Vista para o Atlântico
Romântico, Semântico
Lambdas completos
Em ondas de amores Honestos,
Incestos, Repletos.

quarta-feira, outubro 04, 2006

Minha Primeira Vez

É hoje. Mal abri os olhos e foi esse o primeiro pensamento que me veio à cabeça. Não posso mais adiar, continuei na cama a refletir, o que vão pensar de mim se eu nunca fizer? Afinal, não vou ser o primeiro nem o último da história a praticar tal ato. Está decidido, de hoje não passa.

O café desceu mais amargo que o habitual; notei que já estava entrando em um grau acentuado de nervosismo e o relógio estava marcando apenas sete e quinze da manhã. Pus-me então a pensar sobre o assunto, já que não adiantava tentar disfarçar posto que só aumentaria minha apreensão. A primeira vez não é nada fácil, imagine então uma primeira vez numa cidade desconhecida, sem família nem amigos para que possam oferecer senão apoio, ao menos um diálogo confortante.

Aquele corpo ali, deitado, esperando por você. Como se existisse apenas uma única pessoa capaz de realizar a proeza dentre as milhares do mundo. Uma sutil entrega, fazendo com que você tenha, mesmo que por instantes breves, o poder de trazer uma nova vida de dentro da pessoa. Ação que parece ser até mesmo, heróica. Eu precisava de calma. Afinal, em teoria, já havia aprendido como agir. No curso, falávamos tantas vezes sobre o mesmo tópico que já era enfadonho discorrer sobre tal. Contudo, uma coisa era sabida e temida por todos nós, nervosismo naquelas horas só atrapalha.

Quantas não foram as vezes nas quais nossas mães, orgulhosas de si, narraram e discutiram sobre ao assunto. Algumas contam com tantos detalhes que surpreendem até o mais experiente. É claro que também há aquelas que não gostam nem de relembrar suas experiências, aliás, o que é mais habitual. Elas dizem que dói; que dá um nervoso, uma sensação de não ter controle sobre o próprio corpo. Paradoxalmente, dizem que passariam por tudo novamente só para ter toda a alegria indescritível quando todo o processo acaba. Um tanto quanto masoquistas.

Pesando prós e contras, parti então receoso a fim de exercer meu dever. Afinal, foi para tal que me formei. Sou médico, vivenciando minha primeira residência em um hospital público do centro da cidade. Realizei com sucesso meu primeiro parto. Às quinze horas e sete minutos, vinte e um de janeiro do ano de mil novecentos e noventa e seis.

quinta-feira, setembro 14, 2006

Nessa segunda-feira, soubemos da morte do nosso querido professor Gilson. Não tenho muito que dizer. Não quero fazer um discurso, nem nada do tipo, só quero pedir algumas coisas:

- Paz.

- Vote com sabedoria. Não gaste seu voto à toa. Pesquise, reflita, escolha corretamente, para que o Brasil melhore, e tragédias como essa não ocorram. Somos uma democracia, se botamos a culpa no governo, estamos culpando a nós mesmos.

- Só existe trafico de drogas com o uso de drogas. Se você usa drogas, tem um dedo seu em crimes como esse.


Obrigado


Para mais informações sobre o ocorrido, clique aqui



quinta-feira, setembro 07, 2006

Finais Alternativos

Achei meio parado e suspenso o final do meu último post, então fiz alguns finais alternativos. [se não leu o post “Fredo”, leia, ou não vai entender porra nenhuma]

Final I (dedicado ao Léo)

Fredo pisou os pés na calçada. Estava caindo uma fina garoa naquela manhã de verão. As gotas caiam no seu rosto, provocando uma sensação que a tempo não sentia. A emoção era tanta, que não notou o caminhão vindo em sua direção ao atravessar a rua. Não sentiu dor, mas morreu feliz. Agora a única lembrança de Fredo é uma placa na mesa em que sentava.

Final II (dedicado ao Samuel e Lucas)

Quando Fredo estava pegando suas coisas para se levantar, uma senhora de idade, sentada nos fundos da biblioteca começa a vasculhar sua bolsa, e dela puxa uma espingarda calibre 12. Calmamente ela se levanta e começa a atirar gritando: “Morram malditos miseráveis!”. Fredo se joga em baixo da mesa enquanto vários gritam e correm desesperados. Ele olha a mesa de Norma, e vê seu corpo jogado no chão, banhado de sangue. Ao ver que a velha recarregava, Frederico corre para a rua, mas quando cruzava a porta e sentia o sol no seu rosto, é atingido pela velha, e morre, deixando para trás todas as suas pesquisas sobre o pote de pipoca sem fundo.

Final III (dedicado à Haru)

[...]Um sorriso se abriu, revelando os dentes amarelados pelo café, e ele se levantou gritando animado, “Acabei!”. A biblioteca parou e todos o olharam. Ele recolheu suas coisas, cumprimentou Norma e saiu da biblioteca com um largo sorriso no rosto. Ninguém entendeu nada, e ele nunca mais voltou. Logo após a saída de Fredo, entra um rapaz loiro, alto, de cabelo comprido, olhos azul-esverdeados e aspecto trolesco. Ele caminha até Norma, e, com a mão apontando a cabeça, diz: “It’s all in the mind, you know...”

quarta-feira, setembro 06, 2006

Fredo

A biblioteca da universidade estava lotada. Estudantes, sentados nas velhas mesas de madeira escura, faziam pesquisas, debruçados sob pilhas de livros, outros caminhavam entre as altas estantes cheias de livros, procurando algo de interesse. No horário da manhã o movimento sempre era grande, e as bibliotecárias sempre passavam trabalho para organizar a bagunça deixada pelos freqüentadores. Alguns eram tão assíduos que eram conhecidos por nome e sobrenome, número da carteirinha e curso. Mas nenhum era tão conhecido como Fredo.

Fredo era uma lenda na biblioteca, estava por lá a cerca de vinte e cinco anos. Poucos sabem muita coisa sobre ele, sua história é envolta de lendas e mistérios. A única funcionária que estava lá no dia em que ele chegou era Norma, a bibliotecária chefe, uma senhora simpática, de baixa estatura e cabelos grisalhos, que sempre tinha um sorriso nos lábios, entretanto ela sempre desconversa quando perguntada sobre Fredo. Quando fala alguma coisa, diz apenas: “Frederico é apenas um rapaz ocupado”. A lenda mais conhecida sobre ele, é que em um dia de chuva, Frederico, um estudante de medicina, foi à biblioteca fazer um trabalho sobre anatomia, e ficou dias tentando acabá-lo, mas na sétima noite do sétimo dia, ele ficou louco e nunca mais saiu de lá. Outras lendas dizem que ele foi possuído pelo espírito do arquiteto; mas são apenas histórias.

No começo, achavam que ele sairia logo, mas todo dia pegava mais livros para estudar. Quando acabaram os de medicina, ele passou para matemática e agora estava acabando os de física. Como nunca saia da biblioteca, Norma começou a comprar as refeições do rapaz, sempre um prato com comida do restaurante universitário. Ele também dormia ali, debruçado sobre a mesa. Apesar da aparência maltrapilha, barba e cabelos compridos e desorganizados, sempre fazia sua higiene pessoal no banheiro. Suas roupas eram doadas por outros freqüentadores da biblioteca. Sua mesa era exclusiva, ninguém podia sentar lá, se não era expulso por berros, ou até por livros e borrachas atirados por Fredo contra o invasor. Um trote clássico era mandar algum calouro no lugar de Frederico quando este ia ao banheiro. Sempre rendia boas risadas. A mesa também apresentava rabiscos dos cálculos mais variados: desde simples divisões até as mais complicadas funções logarítmicas, e diversas folhas de caderno amassadas, que ficavam se acumulando até que ele resolvesse jogá-las no lixo.

Apesar das aparências, todos respeitavam Fredo. Alguns por medo, outros porque ele nunca fazia mal a ninguém. Algumas vezes até tirava duvidas dos estudantes, mas essas eram raras, geralmente ele os deixava falando sozinhos. A única pessoa com quem ele falava, mesmo que pouquíssimo, era Norma. Ela tratava-o como um filho, e muitos desavisados achavam que ela era sua mãe mesmo.

Agora no meio da manhã, ele estava debruçado sobre sua mesa, escrevendo rapidamente, com um brilho diferente nos olhos. Estava diferente a manhã toda, se comunicava mais, até cumprimentava algumas pessoas que passavam por sua mesa. De repente, parou, levantou a folha na frente do rosto, para conferir seus cálculos. Um sorriso se abriu, revelando os dentes amarelados pelo café, e ele se levantou gritando animado, “Acabei!”. A biblioteca parou e todos o olharam. Ele recolheu suas coisas, cumprimentou Norma e saiu da biblioteca com um largo sorriso no rosto. Ninguém entendeu nada, e ele nunca mais voltou.



Dedicado ao Lucas, e às conversas insanas na biblioteca.